….mais um dia de sol abrasador….o alcatrão derrete, os cães vadios, sedentos e famintos procuram uma sombra onde se abrigar, do inferno que se abate injustamente sobre eles…..o silencio impera, porque ninguém se atreve, sequer, a espreitar a fornalha que emana do lado de fora. Eu sou apenas mais uma, aguardando que a noite traga algum sinal de alento e me afaste da letargia a que sou abandonada, fruto do excesso de calor. Sinto-me meio adormecida e, quase sem querer, os pensamentos transportam-me ao passado.
….relembro igualmente os dias escaldantes de verão, as férias passadas a sul e as longas pedaladas na bicicleta emprestada pela Ângela. Pedalávamos, debaixo de um sol abrasador mas as forças da juventude não nos faziam fraquejar nem tão pouco sentir o sol a cair sobre nós, impiedosamente.
….durante vários anos a Ângela foi a minha amiga e cúmplice, em tempo de férias. Partilhávamos segredos, desenvolvíamos estratégias de escape aos olhares atentos dos nossos pais, namoriscávamos os rapazes mais giros da praia e, terminadas as férias, tudo ficava enterrado no areal….. certamente, essas memórias felizes ainda lá estão guardadas, esperando com expectativa que alguém as desenterre….não percebem que isso jamais será possível.
….tinha tantos sonhos….queria ser bailarina e actriz. Costumava assistir às aulas de dança clássica de uma amiga, cujos pais tinham dinheiro para lhe proporcionar aquela atividade. Olhava com enlevo a elegância dos movimentos e a beleza dos Tutu e sapatilhas cor- de- rosa.
….quando chegava a casa, punha-me em frente ao espelho e tentava imitar tudo o que via. Era indescritível a magia e a felicidade que sentia naqueles momentos. Depois, a realidade tornava-se mais amarga….tudo não passava de um sonho, cuja hipótese de se realizar era remotamente possível…..
Durante os anos que se seguiram, o sonho não se extinguiu e, muitas vezes, quando adormecia, sonhava que estava em cima de um palco a dançar e a rodopiar, leve como uma pena, livre como um pássaro que aspira à liberdade…..
Continuo entorpecida pelo calor mas, o meu pensamento volta de novo a fazer rewind e regresso de novo à idade da inocência. Tudo era tão mais fácil….apenas me preocupava em viver e ser feliz. Recordo com saudade a vizinhança: a vizinha Bia, mulher de bom coração, mas temente a Deus, beata convicta que não perdia as missas nem na igreja da vila, nem tão pouco as que passavam no rádio. Engraçada a Bia, e ao mesmo tempo de atitudes tão contraditórias: adorava ver touradas na TV e era sempre o mesmo festival de gritos, acompanhados de “ai coitadinhos”….eu ria-me a bandeiras despregadas, porque já sabia que ela se estava a referir às pegas e à sova que os forcados levavam dos touros. Na realidade, ela pouco via dessas pegas, porque assim que o touro avançava para o forcado, ela tapava os olhos com as mãos e começava a gritar, sem perceber sequer o que se estava a passar, guiando-se apenas pela sua imaginação.
….pachorrento, o marido da Bia, o Xico, olhava-a com complacência e encolhia os ombros. Era uma óptima oportunidade para ele conseguir escapulir-se de casa e ir até à taberna da frente, beber o seu copinho de vinho. Claro que quando regressava e o cheiro a vinho chegava veloz às narinas da Bia, havia logo a continuação do arraial. Desta vez não por causa dos forcados, mas por causa do Xico e dos seus copinhos de vinho. Ele continuava a encolher os ombros e não lhe respondia; comportava-se como um menino pequenino, apanhado em flagrante, numa maldade. No entanto, eram os melhores pais do mundo, sempre dispostos a acudir às aflições das filhas. A Bia fazia quilos de bolos e arrebanhava tudo o que podia, para enviar uma encomenda bem recheada às suas raparigas.
Do lado esquerdo da minha casa, vivia um outro casal muito sui- generis: a Antónia e o José. Não tinham filhos. À semelhança da Bia, a Antónia adorava berrar com oJosé, porque também ele adorava os seus copos de tinto carrascão, apesar de os dele serem muito melhor abastecidos que os do Xico. O José tocava na banda da vila e o que eu mais gostava era de experimentar tocar o trombone que o acompanhava, religiosamente, para onde quer que ele fosse. Eu ficava desesperada, por não conseguir sequer arrancar dali uma nota e de ver a assistência a rir-se de mim, aquela miúda franzina que, obstinadamente, não queria deixar-se vencer por aquele colosso, que fazia duas vezes o seu tamanho. Acabei por perceber que a música não seria, definitivamente o meu futuro.
….quando o Xico e o José partiram, ambos vencidos pela cirrose, o meu mundo ficou mais pequeno. A tristeza abateu-se sobre a vizinhança, porque afinal de contas, eles eram como os ingredientes de um bolo: faltando um, o bolo já não fica igual, o seu sabor fica de longe mais empobrecido.
…..mais tarde, também a Bia e a Antónia foram para um lar, onde acabaram por falecer. Hoje olho para aquele bairro e, com tristeza, vejo que apesar do seu embelezamento arquitectónico, feito pelos novos inquilinos do casario, tudo me parece um monte de cinzas. Afinal de contas, as histórias da minha infância ficaram em escombros, abanaram os meus alicerces, suplantadas por novas paredes que não conseguem entender como estão a usurpar o lugar de várias vidas que ali foram felizes.
O meu corpo e a minha mente ficam cada vez mais entorpecidos, misturando a realidade com o sonho. Pouco a pouco os meus olhos vão-se fechando, mas ainda consigo escutar a letra de uma música, oportunamente a passar no rádio, ““se eu voltasse atrás, por minha vontade, trocava alguns anos desta vida por um só dia na tua idade”……
……acabei por adormecer e voltar de novo à infância……..
….relembro igualmente os dias escaldantes de verão, as férias passadas a sul e as longas pedaladas na bicicleta emprestada pela Ângela. Pedalávamos, debaixo de um sol abrasador mas as forças da juventude não nos faziam fraquejar nem tão pouco sentir o sol a cair sobre nós, impiedosamente.
….durante vários anos a Ângela foi a minha amiga e cúmplice, em tempo de férias. Partilhávamos segredos, desenvolvíamos estratégias de escape aos olhares atentos dos nossos pais, namoriscávamos os rapazes mais giros da praia e, terminadas as férias, tudo ficava enterrado no areal….. certamente, essas memórias felizes ainda lá estão guardadas, esperando com expectativa que alguém as desenterre….não percebem que isso jamais será possível.
….tinha tantos sonhos….queria ser bailarina e actriz. Costumava assistir às aulas de dança clássica de uma amiga, cujos pais tinham dinheiro para lhe proporcionar aquela atividade. Olhava com enlevo a elegância dos movimentos e a beleza dos Tutu e sapatilhas cor- de- rosa.
….quando chegava a casa, punha-me em frente ao espelho e tentava imitar tudo o que via. Era indescritível a magia e a felicidade que sentia naqueles momentos. Depois, a realidade tornava-se mais amarga….tudo não passava de um sonho, cuja hipótese de se realizar era remotamente possível…..
Durante os anos que se seguiram, o sonho não se extinguiu e, muitas vezes, quando adormecia, sonhava que estava em cima de um palco a dançar e a rodopiar, leve como uma pena, livre como um pássaro que aspira à liberdade…..
Continuo entorpecida pelo calor mas, o meu pensamento volta de novo a fazer rewind e regresso de novo à idade da inocência. Tudo era tão mais fácil….apenas me preocupava em viver e ser feliz. Recordo com saudade a vizinhança: a vizinha Bia, mulher de bom coração, mas temente a Deus, beata convicta que não perdia as missas nem na igreja da vila, nem tão pouco as que passavam no rádio. Engraçada a Bia, e ao mesmo tempo de atitudes tão contraditórias: adorava ver touradas na TV e era sempre o mesmo festival de gritos, acompanhados de “ai coitadinhos”….eu ria-me a bandeiras despregadas, porque já sabia que ela se estava a referir às pegas e à sova que os forcados levavam dos touros. Na realidade, ela pouco via dessas pegas, porque assim que o touro avançava para o forcado, ela tapava os olhos com as mãos e começava a gritar, sem perceber sequer o que se estava a passar, guiando-se apenas pela sua imaginação.
….pachorrento, o marido da Bia, o Xico, olhava-a com complacência e encolhia os ombros. Era uma óptima oportunidade para ele conseguir escapulir-se de casa e ir até à taberna da frente, beber o seu copinho de vinho. Claro que quando regressava e o cheiro a vinho chegava veloz às narinas da Bia, havia logo a continuação do arraial. Desta vez não por causa dos forcados, mas por causa do Xico e dos seus copinhos de vinho. Ele continuava a encolher os ombros e não lhe respondia; comportava-se como um menino pequenino, apanhado em flagrante, numa maldade. No entanto, eram os melhores pais do mundo, sempre dispostos a acudir às aflições das filhas. A Bia fazia quilos de bolos e arrebanhava tudo o que podia, para enviar uma encomenda bem recheada às suas raparigas.
Do lado esquerdo da minha casa, vivia um outro casal muito sui- generis: a Antónia e o José. Não tinham filhos. À semelhança da Bia, a Antónia adorava berrar com oJosé, porque também ele adorava os seus copos de tinto carrascão, apesar de os dele serem muito melhor abastecidos que os do Xico. O José tocava na banda da vila e o que eu mais gostava era de experimentar tocar o trombone que o acompanhava, religiosamente, para onde quer que ele fosse. Eu ficava desesperada, por não conseguir sequer arrancar dali uma nota e de ver a assistência a rir-se de mim, aquela miúda franzina que, obstinadamente, não queria deixar-se vencer por aquele colosso, que fazia duas vezes o seu tamanho. Acabei por perceber que a música não seria, definitivamente o meu futuro.
….quando o Xico e o José partiram, ambos vencidos pela cirrose, o meu mundo ficou mais pequeno. A tristeza abateu-se sobre a vizinhança, porque afinal de contas, eles eram como os ingredientes de um bolo: faltando um, o bolo já não fica igual, o seu sabor fica de longe mais empobrecido.
…..mais tarde, também a Bia e a Antónia foram para um lar, onde acabaram por falecer. Hoje olho para aquele bairro e, com tristeza, vejo que apesar do seu embelezamento arquitectónico, feito pelos novos inquilinos do casario, tudo me parece um monte de cinzas. Afinal de contas, as histórias da minha infância ficaram em escombros, abanaram os meus alicerces, suplantadas por novas paredes que não conseguem entender como estão a usurpar o lugar de várias vidas que ali foram felizes.
O meu corpo e a minha mente ficam cada vez mais entorpecidos, misturando a realidade com o sonho. Pouco a pouco os meus olhos vão-se fechando, mas ainda consigo escutar a letra de uma música, oportunamente a passar no rádio, ““se eu voltasse atrás, por minha vontade, trocava alguns anos desta vida por um só dia na tua idade”……
……acabei por adormecer e voltar de novo à infância……..
Clarisse