Aquele dia amanheceu tradicionalmente frio, como frias são todas as manhãs de Inverno profundo.
Estranhamente, o sol lançava os seus raios com tal intensidade que parecia querer sugar todo e qualquer resquício de vida.
Acordei para mais uma semana na capital do país. O transporte que me levaria ao destino não era tolerante com preguiças matinais, mas estranhamente, aquela manhã trazia no ar um pressentimento arrepiante, a estranha sensação de que algo estava predestinado acontecer naquele dia.
Ainda anestesiada pelo sono, subi mecanicamente para o autocarro, juntamente com mais alguns companheiros de viagem, igualmente anestesiados e inexpressivos.
Dava por mim a olhar para aqueles rostos, tentando adivinhar que tipo de vida poderia marcar tão profundamente aquelas inexpressões. Ria-me de mim, porque pensava encontrar naquelas máscaras a imagem da minha própria vida, insonsa e desinteressante.
Segui viagem, absorta nos meus pensamentos, tentando prever como iria decorrer mais uma semana daquele curso onde alguém se tinha empenhado em colocar-me: bibliotecária. A parte positiva daquele marasmo prendia-se com a perspectiva de vir a perder-me entre uma das minhas paixões: os livros.
Os quilómetros decorriam e os meus pensamentos acompanhavam a sua velocidade.
Cheguei ao meu destino e corri para tentar apanhar um dos táxis que atravessavam velozmente a cidade. Após várias tentativas frustradas, houve um que reparou naquela figura de menina- mulher e parou para a recolher. A ordem era seguir o mais rapidamente possível, porque o tempo não pára nem perdoa e o atraso já era mais que evidente.
Finalmente, ali estava eu junto á entrada do local onde iria dedicar mais uma semana da minha existência, na aprendizagem da classificação de livros, catalogação, indexação e mais algumas coisas sensaboronas.
O dia decorreu como os outros, exceptuando a ausência da minha mente, que teimosamente insistia em dar-me sinais de alerta que eu não decifrava, mas que me inquietavam profundamente.
Ao fim do dia corri para o metro e tentei encontrar o meu pequeno espaço na lata de sardinhas. Mais uma vez teimei em olhar os rostos que o reduzido espaço me permitia vislumbrar e pareceram-me todos incrivelmente e assustadoramente iguais. Rostos inexpressivos, ausentes de qualquer tipo de sentimento, distantes no tempo e no espaço. Poderia, naquele momento, ocorrer um cataclismo e, certamente, aqueles rostos não alterariam a sua fisionomia.
Senti um enorme mau- estar, porque, olhando aqueles autómatos, todos me faziam lembrar a morte. Um arrepio enregelante percorreu o meu corpo e procurei enxotar os maus pensamentos para bem longe dali.
Após duas horas enlatada entre tantos cheiros, cheguei àquela casinha pequena mas acolhedora, nos arrabaldes de Lisboa. Como era hábito, tinha uma agradável refeição à minha espera, preparada por alguém que pouco mais tinha para dar do que o amor, o carinho e a entrega, mas que para mim representava o mais valioso dos tesouros.
Comi, devagar, mecanicamente, sentindo o cansaço que me invadia o corpo e a mente. Procurei recompor-me, pois ainda tinha um caderno de apontamentos para ordenar. Terminei a minha refeição e lancei mãos à obra.
O cansaço insistia em invadir-me e de repente todos os meus sentidos acordaram ao som do telefone. Que seria? Eram 22 horas de uma noite chuvosa de Inverno e pouco habitual ouvir-se aquele som, sobretudo àquelas horas!
Ah! Era o Luís! Há que tempos não nos falávamos! Incrível como dois irmãos que se adoravam, trabalhando na mesma cidade, estavam tanto tempo sem se comunicar. Estranha voz a do Luís!
- Então irmão, há quanto tempo sem nos falarmos! Ainda és vivo?
- Por enquanto, irmã, por enquanto! Então como estás?
- Cá vou andando com o curso às voltas. Agora já está quase no final e tenho que me empenhar. Mas podíamos encontrar-nos para almoçar e assim colocarmos a conversa em dia. Que dizes?
- Parece-me bem! Olha, apanhas um autocarro que te leve à Praça do Comércio e encontramo-nos lá na esquadra. Pode ser assim?
- Por mim está bem! À hora de almoço lá estarei. Até amanhã então. Ainda vou terminar de ordenar os meus apontamentos do curso. Beijinhos!
- Adeus maninha, até amanhã!
22.15h! O telefone tocou novamente e o meu corpo estremeceu violentamente. Outra vez? Mas este telefone hoje não pára de tocar até tão tarde?
Continuei absorta no meu trabalho, porque alguém já se tinha disponibilizado a calar aquele trinir. Repentinamente oiço choros, lamentos, angústia e começo a tremer descontroladamente.
- Que foi tia Céu? Que aconteceu?
- Ai o Luís, filha! Ai o Luís! Que loucura ele cometeu! Como é que teve coragem para tal disparate?
Aí eu percebi tudo!
Aí estava o resultado dos meus pressentimentos!..... os soluços, o choro, o desespero, brotaram violentamente de dentro de mim.
O mundo estava a cair-me em cima e eu sabia que as minhas forças não eram suficientes para aguentar tanta dor. O meu estômago contraiu-se descompassadamente, tentando expulsar algo que já não continha.
Dor, dor, tanta dor! Impossível descrever este sentimento irreversível de perda, de impotência!
Num acto de desespero, o Luís pensou ter chegado a sua hora de partir. Procurou a paz e a tranquilidade que durante tantos anos tinham insistido em fugir-lhe.
O menino que não chegara a conhecer a sua mãe, resolveu ir ao seu encontro, aninhar-se nos seus braços e esperar ouvir, finalmente, uma canção de embalar.
Juraria que nesse dia, quando olhei para o céu á procura de alento, vi o Luís sorrir para mim!
Clarisse